Era Ela


Lívia Diamantino

Era tarde. E olhe que ali, no cair do sol, já era tarde. Nem o Bar do Juvenal estava aberto. Facções disputavam a área e pra quem morava ali, não importava muito quem estava no comando. Eram todos soldados de uma mesma Marechal: a Violência. O medo botava todo mundo pra ir ver novela. O lugar, que já foi chamado de Malvinas, agora era Bairro da Paz. Não, não é piada de mau gosto. Sim, esse lugar existe em Salvador. O único que ele conheceu como casa. Foi encontrado ainda bebê no bambuzal do aeroporto e criado junto com a molecada, de casa e casa, as vezes na rua, onde agora não se via um pé de gente. Nem o dele. Andaria sem ser visto mesmo numa terça de carnaval. Ninguém olhava pra gente como ele. Nem ali. Mas aquele silêncio fazia um zumbido no pé da nuca. O sinal. E onde tinha merda acontecendo, ele tinha que estar. Sentia o gosto metálico do medo e caminhou tentando achar de onde vinha. Tortura, será? Tiro não foi. E o que ele tinha com isso? Ah, porra! Se o aviso vinha, tinha que ter uma razão. Precisava correr. Não sabia porque acabava se metendo, mas não resistia. As televisões ligadas atrapalhavam. Andou de rua em rua até não ouvir mais nada. O quer que fosse, tinha acabado. Exausto, deitou ali mesmo. Acordou com um pisão em sua mão. O sol batendo na cara, a mão latejando, um vai e vem de gente apressada, estômago urrando. Abriu e fechou a mão. Estava inteira. Levantou ainda grogue, se apoiando na mão boa. Olhou em volta, fome da porra, quando a viu, esperando o ônibus. Ela olhava para baixo, distraída. O cabelo partido para o lado voava com o vento, escondendo seu rosto. Mas era ela. O zumbido na nuca voltou, confirmando. Acompanhou com o olhar enquanto ela entrava na condução e sumiu na esquina.
No meio da tarde, ela voltou. Ele a seguiu até uma casa de reboco, gêmea de todas, porta e janela, numa viela que ele nunca tinha entrado. Ali era assim: uma casa brotando da outra. Como ninguém viu nem ouviu nada? Ficou de fora olhando e a viu sair de novo. Tinha trocado de roupa. Olhou para os lados e entrou pela janela. Por dentro, a casa era ajeitadinha: sala, cozinha, um banheiro cheirando a Pinho Sol e uma porta fechada que devia ser o quarto. Pisou numa boneca toda riscada e se segurou pra não gritar. Tinha criança ali? Como? Caralho, como poderia ser aquele o lugar? Conseguiu se espremer entre o sofá e a parede, esperando a hora de agir. A moça voltou com uma menina no colo, não devia ter mais que dois anos. Deu banho e comida à bebê e ficaram brincando no chão, entre o sofá e a televisão, sem fazer ideia de que ele estava ali.
A bebê tinha acabado de dormir quando o marido chegou. Foi direto para a cozinha, onde ela colocava uma panela no fogão. Deu um beijo no ombro dela e acariciou seus cabelos. Não dava pra ver direito, mas ouviu ele puxar assunto:
– Trouxe um celular novo. – falou carinhoso – Me desculpe, não queria quebrar o outro. Já até coloquei o chip e vou botar pra carregar, tá?
Ela não respondeu. Ouviu o riscar do fósforo e a boca do fogão acendendo. De repente, ela explodiu:
– Então, você pede desculpas por ter quebrado o celular?!
– Sim, já falei! Quantas vezes você quer que eu peça? Te dei outro! Novo, tirei da caixa.
– O povo aqui tudo tem medo é da rua.
– Do que você tá falando, sua doida?
– De ontem. Foi a última vez. Tá ouvindo bem? Úl–ti–ma–vez que você me bateu, seu filho da puta!
– Ah! Tudo agora é isso! – ele explodiu de volta – A gente brigou! Você também me bateu. Se tivesse me dado logo a porra do celular... era só ter mostrado, mas claro que você tá escondendo coisa. Confesse! Não inverta não...
– Sai daqui!! – ela gritou e foi saindo em direção a panela com água fervendo. Ele foi atrás dela quando tomou uma rasteira e bateu com a cabeça no chão. Ela olhou a cena pálida.
– O quê? Você... É o Sa...
Ele levou o dedo indicador à boca em sinal de silêncio.
– Nunca diga meu nome – sussurrou – Eu não existo.
– É o quê? – falou quase gritando, o olhar era cheio de ódio – Essa vingança é minha, meu filho. Só minha!
Ele continuou calmo.
– Desligue essa água. Ou use pra passar um café pra gente. Você não merece ir pra cadeia! Nem sua filha ficar sem mãe. Deixe comigo.
– Nunca! Eu quero que ele saiba que fui eu!
– Vai saber. Tem minha palavra.
Ela estancou, considerando a oferta.
– E eu digo o quê pra todo mundo?
– A verdade. A rua tá foda.
Ela assentiu e foi pra cozinha passar o café. Quando voltou nenhum dos dois estava mais lá.

voltar

Lívia Diamantino

E-mail: liviadgs@hotmail.com

  

Clique aqui para seguir este escritor


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose